Fernanda Montenegro, a figura humana de uma grande atriz

Não são apenas os prêmios, os personagens e a gloriosa trajetória profissional que tornam Fernanda Montenegro quem ela é. Seriedade, caráter e humildade compõem a figura humana da maior atriz do país. Assisto de longe Fernanda Montenegro rodeada de jornalistas respondendo toda sorte de perguntas com a voz baixa e a paciência de um monge. Já são mais de 50 minutos de indagações, e ela emprega cada palavra na oratória com o didatismo de quem reflete sobre as questões pela primeira vez na vida, o que não é verdade, vide que está prestes a completar 89 anos em 16 de outubro, dos quais 68 dedicados à profissão.

Combinamos de falar a sós durante 15 minutos – foi o tempo que a assessoria de imprensa da atriz me concedeu para esta entrevista. Passam-se mais 30 minutos de perguntas e respostas até que sentamos em uma mesa redonda em um canto do amplo salão.

– A senhora está cansada? – pergunto a ela.
– Não, não estou cansada. Não posso me dar esse direito. Me programei para estar à disposição de vocês durante toda a tarde e é isso que devo cumprir. Afinal, se estou fazendo o meu trabalho, vocês estão fazendo o de vocês, não é assim?

Assim é Fernanda Montenegro: profissional. Uma operária atenciosa e a serviço da profissão, imune a todos esses adereços de fama e vaidade que costumam acompanhar artistas que se julgam maiores do que sua obra. Fernanda é econômica em sorrisos, não desvia os olhos castanhos do interlocutor, tem a fala mansa, pausada e uma seriedade que quase incomoda, mas que, seguramente, foi e é determinante para garantir o respeito e o reconhecimento que amealhou ao longo de seis décadas.

fernanda-montenegroFERNANDA MONTENEGRO: HUMILDADE DE UMA OPERÁRIA A SERVIÇO DA PROFISSÃO

A senhora completará 89 anos em outubro e tem 68 de carreira. Qual é o grande prazer de ser atriz?
O prazer é você dar conta de uma vocação. Porque ser atriz é uma questão de vocação. Se você tem uma vocação e você faz essa vocação acontecer, metade da sua vida está resolvida. Você só tem que cuidar da outra parte. É difícil? É. Um desafio diário? É. Um frio na barriga eternamente? É. Mas eu seria muito infeliz se não estivesse passando até hoje por tudo isso, porque eu não estaria cumprindo uma vocação que Deus me deu. Ser atriz é um daqueles prazeres que eu chamo de gozosos e dolorosos.

A senhora começou sua vida artística ainda menina e em uma época em que havia preconceito contra mulheres que faziam teatro. Para completar, era a mais velha de três irmãs, ou seja,a filha que experimentava primeiro do que as outras os limites dados pelos pais. Qual foi a reação da sua família quando a senhora manifestou, ainda adolescente, o desejo de ser atriz? E outra pergunta: a senhora tinha certeza da sua vocação já naquela época?
Eu acredito que sim. É o que a Simone Beauvoir fala do acaso. Por acaso, se ouvia uma rádio educacional e cultural, que era a Rádio do Ministério da Educação e Cultura. Por acaso eu ouvi um dia que iam abrir um concurso para admitir gente para essa rádio. Fui até lá, muito tímida. Fiz um poeminha pequeno, apresentei e achei que não tinha ido bem. Dois meses depois, recebi um telegrama dizendo que me apresentasse. Passei a ser redatora, tive um programa literário durante muitos anos, enfim, me entrosei na vida da rádio, que era puramente cultural. E as coisas foram acontecendo. Conheci um colega da própria rádio que fazia teatro, fui lá, fiz um papelzinho. Depois apareceu o convite de uma companhia que precisava de uma jovem atriz e me apresentei.

Sempre com o consentimento dos pais?
Nunca peitei ou desafiei a família. Teve uma hora em que simplesmente os meus pais entenderam que eu não estava brincando. Devagarinho, sem nenhuma atitude revolucionária surda, eles perceberam que eu falava sério e me apoiaram porque viram que eu não era leviana, que a minha decisão não era gratuita, não era um capricho adolescente de disputa de poder com a família. Era vocação mesmo. Eles só não concordavam que eu fizesse teatro: “Isso não”, diziam, “porque à noite você não estará em casa”. Mas logo veio a televisão e, então, se gravava durante o dia. E eu fui indo, indo, indo…

A senhora começou a carreira em viveu boa parte dela em uma época em que o ator era tão somente um artesão do seu trabalho. Não existiam revistas de celebridades – muito menos a palavra celebridade -,  nem paparazzi e nem todo esse desejo de se mostrar lindo, rico, famoso e feliz. Era uma época mais saudável?
Era uma época diferente. Não tinha a indústria da imagem, não tinha a indústria televisiva. O cinema era chanchada. O teatro era muito visto, porque era um campo mais de diversão. não tinha ainda essa ambição cultural, tão artística do ponto de vista de um rigor estético.

“Hoje em dia, a visão que se tem do artista é sempre uma maravilha. Parece que tudo é festa, tudo vira capa de revista, tudo é casa com piscina. Trata-se de uma indústria paralela que enche páginas de revistas com gente disposta a toda essa exposição para, através dela, aparecer na tevê.”

Lendo entrevistas suas, percebi sempre um desconforto, um incômodo de sua parte ao ser chamada de primeira-dama do teatro brasileiro. Minha percepção é verdadeira?
Não sei lhe dizer exatamente quando essa coisa toda começou. Acho um título bobo que não quer dizer nada. Só a gente sabe a hora em que acerta e a hora em que erra. Uma hora você está numa boa; em outra, pode ter entrado numa fria. Nós somos um país com muitos atores e atrizes de primeiríssima qualidade. É desconfortável esse tipo de coisa, sabe? Desconfortável é a palavra.

A carreira internacional nunca a seduziu?
Na época da indicação ao Oscar de melhor atriz por Central do Brasil, eu tinha 70 anos. De repente, aconteceu de eu estar entre as cinco candidatas ao prêmio. Mas, como eu disse, tinha 70 anos de idade, entende? Era sul-americana, não tinha agente. Apareceram convites para viver uma mexicana dona de uma fazenda no Texas, uma chilena, uma iraniana, uma espanhola, uma salvadorenha. E eu sempre respondi que no Chile, no Irã, na Espanha, no México e em El Salvador deveriam existir atrizes talentosas para todos esses papeis.

293669MERCEDES, DE “O OUTRO LADO DO PARAÍSO”: O MAIS RECENTE TRABALHO NA TV

Por mais Fernanda Montenegro que se seja, a indústria americana nunca dará a latinos a oportunidade de viver personagens que fujam desse estereótipo, concorda?
Hollywood é uma ilusão. Nós seremos sempre esses atores e atrizes reservados para esses papéis. Ou o ator viverá um latin lover, ou a atriz será uma latina que é a segunda mulher de um fazendeiro sem nenhuma qualificação. Na indústria cinematográfica americana, eles não fazem distinção se você é argentina, brasileira, boliviana. Eles inventaram uma raça: os latinos. Do México para baixo, somos todos iguais.

A televisão é o meio audiovisual que mais reflete a sociedade brasileira, e essa sociedade, apesar de muitos avanços nos últimos anos, ainda é conservadora em alguns aspectos, como, por exemplo, o beijo gay. É mentira dizer que este tabu está superado. Uma pesquisa recente revelou que 63% dos brasileiros não concordam com a exibição do beijo gay em novelas. O que a senhora pensa disso?
Não tenho nada contra um beijo gay na televisão. A questão é como vai ser este beijo gay, compreende? Aliás, não tenho nada contra beijo nenhum. Depende do tipo de beijo. Atualmente, não se beija em televisão. Atualmente, os atores comem a boca uns dos outros.

“Não existe uma diversificação  do sentimento do beijo na TV. O menino de 15 anos come não só os dois lábios da menina, mas o início do nariz e do queixo. São verdadeiras ventosas. Não existe erotismo nos beijos da televisão. É como uma missão a cumprir, e nós ficamos ali, assistindo a um comer a cara do outro.”

Que tipo de avó a senhora é? Faz o gênero “a mãe não deixa, mas a vó permite”?
Não tenho tempo de ser aquela vovó do imaginário das pessoas. E também não sei tratar criança de maneira tatibitate, fazer da criança um ser débil mental, sabe? Sou uma avó calma e olho meus netos como gente.

A senhora já sofreu perdas de familiares e amigos muito queridos ao longo da vida. Nesses momentos de perda de pessoas próximas e queridas, parece que ficamos mais vulneráveis à questão da morte, como se passássemos a senti-la mais presente em nossas vidas. A senhora pensa sobre isso?
Eu penso na morte todos os dias, desde que passei a me entender por gente e desde que prestei atenção ao fato de que se morria. Mesmo quando você é criança, tem uma hora em que você vê a morte, você vê algum parente morrer, você vê algum desastre na rua em que a morte, enfim, se apresenta.

“Quando você é muito jovem, você acha que a morte está lá adiante, adiante, adiante. Quando chega à minha idade, a percepção é de que a morte está logo ali, é daqui a pouco. E quando os companheiros de geração vão embora, você perde demais. Perde uma grande memória comum, perde pessoas que ajudam a lembrar do melhor e do pior da sua vida. Isso dá uma carência de companheirismo muito grande.”

“Na medida em que você vive muito, você ganha a sua vida, mas, ao mesmo tempo, perde muita coisa no caminho. Você perde a sua geração. E isso é bastante doloroso.”

Como trabalha sua espiritualidade?
Eu sou católica de formação. Fui batizada e crismada, mas também gosto de ler sobre religiões em geral. Na hora do desespero, chamo o céu inteiro. Geralmente, chamo Jesus Cristo, Nossa Senhora e o meu Deus também.

E eles escutam a senhora?
Não posso me queixar.

A senhora é uma mulher de beleza clássica e elegante. É também notada por saber envelhecer bem, sem a necessidade de se submeter a cirurgias plásticas, aplicações de botox e afins. são procedimentos que prejudicam a interpretação de uma atriz?
Não tenho nada contra quem faz, mas eu não faço. Não mexo na estrutura do meu rosto. Tenho minha dermatologista e meus cremes, apenas. Se você tem à disposição meios que te ajudam a estar em paz com o que pretende do seu corpo e do seu rosto, deve fazer os procedimentos que julgar necessários. Se você acha que a boca ou o nariz incomoda, vai lá e resolve. Hoje existem milagres para isso. depende muito dos estímulos de cada um. É uma opção tentar encontrar uma paz entre o que se imagina e o que se consegue ter.

autran-fernanda-1EM CENA DA NOVELA “GUERRA DOS SEXOS”, COM O AMIGO PAULO AUTRAN

O que a senhora faz para relaxar?
Caminho no calçadão de Ipanema.

E o que faz pela sua saúde?
Eu já fui de comer muito. Atualmente, como bem. Com o tempo, passei a comer menos e de forma mais sadia. Gosto de frutas, verduras e legumes, prefiro carne branca a carne vermelha, mas não sou radical. Gosto de carne, de um docinho de vez em quando e de um café sem açúcar depois do almoço.

A senhora ainda se submete à medicina ortomolecular?
Fiz durante 10 anos e ela me ajudou muito. Mas a batelada de vitaminas começou a me irritar muito o estômago. Hoje em dia, me limito às vitaminas C, D e E. Tenho o colesterol alto, por incrível que pareça, e tenho que viver com ele sob controle.

“Fui escrava da enxaqueca durante muitos anos. Graças a Deus melhorei muito. Tive momentos impossíveis de dor, de não conseguir abrir os olhos. Já representei de olhos fechados, chorando de dor, por não aguentar a luz. Mas a vida é isso aí. É preciso seguir sempre em frente.”

 

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Mari Kalil

Mari Kalil

Sou escritora, jornalista, colunista da Band TV e Band News FM e autora dos livros "Peregrina de araque", "Vida peregrina" e "Tudo tem uma primeira vez". Sou gaúcha, nasci em Porto Alegre, vivo em Porto Alegre, mas com os olhos voltados para o mundo. Já morei em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Barcelona. Já fui repórter, editora, colunista. Trabalhei nos jornais Zero Hora, O Estado de S.Paulo e Jornal do Brasil; nas revistas Época e IstoÉ e fui correspondente da BBC na Espanha, onde cursei pós-graduação em roteiro, edição e direção de cinema na Escuela Superior de Imagen y Diseño de Barcelona. O blog Mari Kalil Por Aí é direcionado a todas as mulheres que, como eu, querem descomplicar a vida e ficar por dentro de tudo aquilo que possa trazer bem-estar, felicidade e paz interior. É para se divertir, para entender de moda, de beleza, para conhecer lugares, deliciar-se com boa gastronomia, mas, acima de tudo, para valorizar as pequenas grandes coisas que estão disponíveis ao redor: as coisas simples e boas.

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