Christiane Torloni e as questões de uma sociedade viciada em Rivotril

Aos 61 anos, Christiane Torloni está à vontade com a vida e todos os seus questionamentos. Nesta entrevista, ela conversou comigo por telefone, um bate-papo interrompido meia dúzia de vezes para que a atriz conseguisse terminar o almoço, assinar o cartão de crédito, despedir-se do maître, atender aos fãs e pedir informações ao taxista.

Você tem 61 anos e, sempre que aparece na tevê, as mulheres querem saber o que faz para se manter tão bem. Conte.
São várias coisas. Eu acho que a gente tem que se ajudar constantemente, em todos os aspectos. Quando uma pessoa diz para mim que ela não consegue fazer uma atividade física, sendo saudável e tendo todas as condições para realizá-la, eu viro as costas e vou embora, porque o nome disso é preguiça. Tem gente que não tem duas pernas ou dois braços e é atleta, basta ver as Paraolimpíadas. Ali está a prova do poder de superação em todos os sentidos. Daí você olha para isso e não consegue levantar de manhã para fazer uma aula?! Por quê? Nosso corpo foi feito para estar em movimento, e é em movimento que ele deve estar até o final da vida, cada um na sua medida.

Quais são seus movimentos?
Eu caminho, ando de bicicleta, faço yoga… Coisas que me dão prazer. Atividade física tem que estar intimamente ligada ao lúdico, ao prazer que você tinha na infância ao se exercitar com alguma prática, que não se chamava nem ginástica, nem esporte. Quando a gente é criança, a gente brinca de correr, de jogar bola, de andar de bicicleta, de ficar em posturas engraçadas… Se você olhar, as crianças fazem tudo isso. E é isso o que eu faço hoje, com a minha idade e com as minhas limitações.

Sua mãe (a atriz Monah Delacy, 88 anos) diz que você se alimenta mal. Você concorda?
(Risos) Eu adoro comer, mas há alguns anos cortei a carne vermelha e a de frango. Minha mãe, como filha de gaúchos, acha isso uma afronta. Minha avó era de Santa Maria, e meu avô, de Cruz Alta. Portanto, para ela é uma ofensa ao genoma familiar.

Qual seu estágio de vaidade?
Eu não sou uma vítima da vaidade e da beleza, não. Pelo contrário: eu sou muito vaidosa com meu trabalho, porque não é um trabalho particular. Ele coloca você em uma exposição pessoal muito grande. Portanto, qualquer roupa mal cortada, maquiagem malfeita, jamais passa despercebida e pesa contra você. Nesse sentido, sou muito chata. Me preocupo com os figurinos, com a minha imagem. Mas é sempre uma vaidade relacionada ao meu ofício de atriz.

Maria Inês ( Christiane Torloni )CHRISTIANE TORLONI: VAIDADE EQUILIBRADA E LIGADA AO OFÍCIO DE SER ATRIZ

Você andou se queixando que o povo está tomando Rivrotril como se fosse floral, que as pessoas estão se anestesiando porque ninguém mais quer se emocionar.
(Interrompendo) E anda mesmo, é impressionante! A vida tem que ser vivida sem anestesia. Anestesia tem hora, local e prescrição específica. A gente vive com algumas angústias, claro. Mas angústia e inquietação não são doenças. A inquietação fez o homem chegar à Lua. Se o homem tivesse tomado Rivotril nas cavernas, estaria colhendo até hoje. Caçar pra quê? Eu acho que a gente tem que tomar muito cuidado com essa predisposição social em que todo mundo é meio cool, parece anestesiado. A gente tem que entender que esses níveis de sentimento fazem parte da condição humana, que são normais.

Eu concordo com a medicina quando ela evita que uma pessoa faça algum mal a si própria. Mas remédio para viver a vida? O homem criou essa sociedade, ele tem que estar preparado para ela. Agora vai começar a se dopar para não enfrentar o mundo que ele próprio criou? Que loucura é essa de Rivotril todo dia?

Você toca em um assunto que fez da escritora Lya Luft uma best-seller. Em “Perdas e Danos”, Lya escreve: “Permitam-me o luto no período sensato. Me ajudem não interferindo demais. O telefonema, a flor, a visita, o abraço, sim, mas por favor, não me peçam alegria sempre e sem trégua.”
(Interrompendo) Claro! A vida é isso: perder e ganhar, nascer e enterrar. À medida que a gente perde a capacidade de viver esse sentimento, a gente está em processo de autodestruição. A vida não é light. Como é que você pode ter essa aproximação com a vida se você está o tempo todo anestesiado?

A peça A Loba de Ray-Ban, que você estrelou por muitos anos, deixava uma lição nesse sentido.
Sim, o final da peça é um grande questionamento sobre o que é a vida. E o Renato Borghi (autor) trazia lindamente à cena o Calderón de La Barca (Pedro Calderón de La Barca, dramaturgo e poeta espanhol, autor do poema A Vida É Sonho). Ele dizia que a vida é sonho e, então, que sonhemos todos. Quem consegue sonhar anestesiado? O sonho ajuda a gente a ir para frente, ajuda a entender a nossa alma. E o teatro é isso, e por isso ele muda a vida das pessoas.

Você interpretou um personagem na novela Torre de Babel, em 1998, que vivia uma relação homossexual com a personagem da atriz Silvia Pfeiffer e foi tamanha a rejeição do público que o autor Silvio de Abreu teve que matá-las em um incêndio.
(Pensa) A sociedade é de uma caretice… E é tão patriarcal! Tem várias culturas que permitem ao homem ter mais do que uma esposa, ter duas, três. Eu não conheço nenhuma cultura no mundo que permita à mulher ter mais do que um marido. Você vê homens dizendo: “Ah, se eu pudesse teria duas mulheres”. Mas você não vê mulheres dizendo “ah, se pudesse eu teria dois, três homens”. Até porque elas mal aguentam um só.

A sociedade continua tão careta quanto naquela época, mas está mais condescendente. Aliás, como a sociedade é hipócrita, né? (risos). Todo mundo tem um amigo gay, uma amiga sapata, mas, se for seu filho ou sua filha, todo mundo grita. Conheço pessoas esclarecidíssimas que, quando descobriram que o filho ou a filha era gay, o mundo veio abaixo.

Você fala sobre homossexualidade com muita naturalidade e se mostra bem à vontade em papéis homossexuais. Você diria que se deve à sua educação? Em casa, quando menina, esse tema não era tabu?
São todas essas coisas juntas. É uma combinação de fatores. E mais: a minha agenda está repleta de amigos gays, homens e mulheres. São amizades de mais de 30 anos. Então, se eu resolver fazer qualquer espécie de patrulha ideológica na minha carreira, é melhor fechar a banca, você não acha?

Eu ainda pertenço ao gênero feminino e ainda pertenço à raça humana (risos). Portanto, enquanto eu estiver nesse plano, estarei negociando com todos os sentimentos, primitivos ou não, que fazem parte do código genético da gente. Quando eu me iluminar, quem sabe isso mude. É por isso que existe o tempo, é por isso que ele passa: para que a gente vá negociando com nossos impulsos internos e vá aprendendo onde a gente está sendo ridícula, onde está perdendo tempo, onde o problema não é o outro, mas a gente.

Você viveu um longo e feliz casamento de 15 anos, porém longe dos padrões tradicionais, já que você e seu ex-marido, Ignácio Coqueiro (diretor), viviam em casas separadas. Você diria que essa é uma das principais características do sucesso da relação?
Esse é um casamento peculiar, é? Eu conheço outros casamentos tão mais peculiares do que o meu… (risos). São acordos sociais, só isso. Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre viveram assim durante 50 anos. A gente está apenas engatinhando, 15 anos não é nada!

Como é se apaixonar depois de uma separação?
Vinicius de Moraes responderia bem a essa questão. Como é que um outro amor pode acontecer se você não deixar o antigo ir embora? Tem gente que reclama: “Ah, não consigo me apaixonar de novo, não consigo recomeçar a minha vida…” Mas é claro! Se não se desapega daquilo que foi, se fica segurando aquele morto para o resto da vida, fica cultivando um cadáver dentro de casa! Aí não tem jeito mesmo. Vai ficar ali, de viúva, o resto da vida.

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Mari Kalil

Mari Kalil

Sou escritora, jornalista, colunista da Band TV e Band News FM e autora dos livros "Peregrina de araque", "Vida peregrina" e "Tudo tem uma primeira vez". Sou gaúcha, nasci em Porto Alegre, vivo em Porto Alegre, mas com os olhos voltados para o mundo. Já morei em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Barcelona. Já fui repórter, editora, colunista. Trabalhei nos jornais Zero Hora, O Estado de S.Paulo e Jornal do Brasil; nas revistas Época e IstoÉ e fui correspondente da BBC na Espanha, onde cursei pós-graduação em roteiro, edição e direção de cinema na Escuela Superior de Imagen y Diseño de Barcelona. O blog Mari Kalil Por Aí é direcionado a todas as mulheres que, como eu, querem descomplicar a vida e ficar por dentro de tudo aquilo que possa trazer bem-estar, felicidade e paz interior. É para se divertir, para entender de moda, de beleza, para conhecer lugares, deliciar-se com boa gastronomia, mas, acima de tudo, para valorizar as pequenas grandes coisas que estão disponíveis ao redor: as coisas simples e boas.

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