O tempo me atropelou

Tenho em casa um calendário de madeira, que depende de mim para estar atualizado. Todo santo dia, levanto pela manhã e, a primeira coisa que faço, é arrumar os dadinhos com dia e mês corretos. Minhas amigas dizem que faz parte do T.O.C (segundo elas, sofro de Transtorno Obsessivo Compulsivo). Deixo que falem. Não é isso.

 Mudar os dadinhos do calendário me dá (uma falsa, talvez?) sensação de que cada dia está em minhas mãos e que tenho absoluto controle sobre ele. Só que, hoje de manhã, ao levantar, levei um susto: os dadinhos marcavam 27 de maio. Ou seja: faz quase um mês que não atualizo os dadinhos do calendário.

 O que é isso? Falta de tempo. Pura falta de tempo. Sinto o tempo me atropelar. Ele não passa rápido, ele voa – e passa por cima de mim feito um trator. Eu não consigo mais regar minhas plantas, não consigo mais espiar pela janela, não consigo mais deitar no sofá e ficar olhando para o teto, não consigo colocar a leitura em dia, não consigo brincar com meu cachorro, não consigo almoçar com minha família, não consigo conversar com meu marido. Sinto como se estivesse me afogando – e cada vez que coloco a cabeça pra fora, o tempo vem e me empurra para o fundo do poço.

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Ontem, levantei da mesa para pegar um café no bar da redação e vinha voltando a trote quando fui surpreendida por um coral de crianças da Legião da Boa Vontade. Elas tinham vindo até aqui para cantar para nós, jornalistas, em homenagem ao Dia da Mídia. Elas cantavam em outro compasso de tempo, elas não tinham essa pressa – e eu me dei o direito de parar para ouvir (coisa rara numa redação).

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Em pé, com meu café, me encostei num pilar e fiquei olhando aquelas crianças cantando; e o tempo, desacelerando. Me emocionei. Não deixei que ninguém visse, mas me emocionei muito. Me emocionei porque me permiti parar cinco minutos, sentir que o tempo estava passando por mim como vento forte e me dei o direito de não correr para alcançá-lo. Eu só queria ficar ali, quietinha, sem e-mails, sem telefone, sem ninguém falando comigo. Só eu, e o tempo frenético bem longe de mim.

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Hoje, ao acordar e ver a data 27 de maio no calendário, não tive forças para tentar recuperar todo esse tempo perdido. Deixei como estava. Hoje quero fazer o mínimo necessário. Estou exausta. Levantei a bandeira branca. Hoje, pelo menos hoje, quero ficar de fora desse mundo interligado e urgente.

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Mari Kalil

Mari Kalil

Sou escritora, jornalista, colunista da Band TV e Band News FM e autora dos livros "Peregrina de araque", "Vida peregrina" e "Tudo tem uma primeira vez". Sou gaúcha, nasci em Porto Alegre, vivo em Porto Alegre, mas com os olhos voltados para o mundo. Já morei em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Barcelona. Já fui repórter, editora, colunista. Trabalhei nos jornais Zero Hora, O Estado de S.Paulo e Jornal do Brasil; nas revistas Época e IstoÉ e fui correspondente da BBC na Espanha, onde cursei pós-graduação em roteiro, edição e direção de cinema na Escuela Superior de Imagen y Diseño de Barcelona. O blog Mari Kalil Por Aí é direcionado a todas as mulheres que, como eu, querem descomplicar a vida e ficar por dentro de tudo aquilo que possa trazer bem-estar, felicidade e paz interior. É para se divertir, para entender de moda, de beleza, para conhecer lugares, deliciar-se com boa gastronomia, mas, acima de tudo, para valorizar as pequenas grandes coisas que estão disponíveis ao redor: as coisas simples e boas.

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