Pra que complicar se dá pra simplificar?

No tempo da minha infância, nossa vida era normal
Nunca me foi proibido comer muito açúcar ou sal.
Hoje tudo é diferente
Sempre alguém ensina a gente que comer tudo faz mal.

Bebi leite ao natural da minha vaca Quitéria
E nunca fiquei de cama com alguma doença séria.
As crianças de hoje em dia não bebem como eu bebia
Pra não pegar bactéria.

A barriga da miséria tirei com tranquilidade
Do pão com manteiga e queijo hoje só resta saudade.
A vida ficou sem graça
Não se pode comer massa por causa da obesidade.

Eu comi ovo à vontade, sem ter contraindicação
O tal colesterol pra mim nunca foi vilão.
Hoje a vida é uma loucura
Dizem que qualquer gordura nos mata do coração.

Com a modernização, quase tudo é proibido
Sempre tem uma lei que nos deixa reprimido.
Fazendo tudo que eu fiz, hoje eu me sinto feliz
Só por ter sobrevivido.

Vi meu pai dirigir com uma total confiança
Sem apoio, sem air bag, sem cinto de segurança.
E eu no banco de trás, solto igualzinho aos demais
Fazia a maior festança.

No meu tempo de criança, por ter sido reprovado
Ninguém ia ao psicólogo nem se ficava frustrado.
Quando isso acontecia, a gente só repetia
Até que fosse aprovado.

Não tinha superdotado nem a tal dislexia
E a hiperatividade era coisa que não se via.
Falta de concentração se curava com carão
E disso ninguém morria.

Naquele tempo se bebia água vinda da torneira
De uma fonte natural ou até de uma mangueira.
E essa água engarrafada, que diz ser esterilizada
Nunca entrou na nossa feira.

Para a gente era besteira
Ter perna ou braço engessado.
Ter alguns dentes partidos
Ou o joelho arranhado.

Papai guardava veneno em um armário pequeno
Sem chave e sem cadeado.
Nunca fui envenenado com as tintas dos brinquedos
Remédios e detergentes se guardavam sem segredos.
E descalço na areia eu joguei bola de meia rasgando as pontas dos dedos.

Aboli todos os medos apostando umas carreiras
Em carro de rolimã, sem usar cotoveleiras.
Pra correr de bicicleta, nunca usei feito um atleta.
Capacete ou joelheiras.

Entre outras brincadeiras, brinquei de carrinho de mão.
Estátua, jogo da velha, bola de gude e peão.
De mocinhos e caubóis.
E até de super-heróis que eu via na televisão.

Sem ter tanta evolução, o PlayStation não havia.
E nenhum jogo de vídeo naquele tempo existia.
Não tinha videocassete muito menos internet.
Como se tem hoje em dia.

O meu cachorro comia o resto do nosso almoço.
Não existia ração nem brinquedo feito osso.
E para as pulgas matar nunca vi ninguém botar um colar em seu pescoço.
E ele achava um colosso tomar banho de mangueira.
Ou numa água bem fria debaixo de uma torneira.
E a gente fazia farra usando sabão em barra
Pra tirar sua sujeira.

Fui feliz a vida inteira sem usar um celular.
De manhã ia pra aula, mas voltava pra almoçar.
Mamãe não se preocupava.
Pois sabia que eu chegava sem precisar avisar.

Comecei a trabalhar com oito anos de idade
Pois meu pai me mostrava que pra ter dignidade
O trabalho era importante
Pra não me ver adiante ir pra marginalidade.

Mas hoje a sociedade esta visão não alcança.
Proíbem a qualquer pai dar trabalho a uma criança.
Preferem ver nossos filhos vivendo fora dos trilhos
Num mundo sem esperança.

A vida era bem mais mansa, com um pouco de sensatez
Eu me lembro com detalhes de tudo que a gente fez.
Por isso tenho saudade e hoje sinto vontade
De ser criança outra vez.

bento1121MAS TU É VELHA, HEIN?

Sou deste tempo, assim como o poeta pernambucano Ismael Gaião da Costa, a quem tive o privilégio de assistir declamando esta poesia e a quem não pude deixar de ceder o espaço da coluna deste fim de semana. Uma poesia simples, mas cheia de verdade. Pra gente nunca esquecer que a vida pode ser descomplicada. As regras, os modismos, as neuroses, os dramas e a falta de limite desta sociedade do século 21 é que andam complicando demais o prazer da nossa existência.

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Mari Kalil

Mari Kalil

Sou escritora, jornalista, colunista da Band TV e Band News FM e autora dos livros "Peregrina de araque", "Vida peregrina" e "Tudo tem uma primeira vez". Sou gaúcha, nasci em Porto Alegre, vivo em Porto Alegre, mas com os olhos voltados para o mundo. Já morei em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Barcelona. Já fui repórter, editora, colunista. Trabalhei nos jornais Zero Hora, O Estado de S.Paulo e Jornal do Brasil; nas revistas Época e IstoÉ e fui correspondente da BBC na Espanha, onde cursei pós-graduação em roteiro, edição e direção de cinema na Escuela Superior de Imagen y Diseño de Barcelona. O blog Mari Kalil Por Aí é direcionado a todas as mulheres que, como eu, querem descomplicar a vida e ficar por dentro de tudo aquilo que possa trazer bem-estar, felicidade e paz interior. É para se divertir, para entender de moda, de beleza, para conhecer lugares, deliciar-se com boa gastronomia, mas, acima de tudo, para valorizar as pequenas grandes coisas que estão disponíveis ao redor: as coisas simples e boas.

6 Comentários
  1. Trabalho na infância não mata. Estimula a solidariedade entre os pais e filhos. E tem o efeito colateral de ajudar na futura gestão financeira, já que a criança aprende a reconhecer o preço de cada coisa.
    A comida que faz mal é A QUE NÃO TEM. ESTA MATA, MESMO!!!
    O resto é comportamental. Nada que o bom senso não resolva. O problema é que bom senso está em falta nos últimos tempos.

  2. Oi, Mariana ! Parabéns por mais um brilhante texto. Bem assim. Tudo era mais fácil e gostoso.Pena que no Donna não tem mais nada parecido. Muita bobagem e preocupação com homofobias. Abraços ! Nelson Gehm

  3. Pura verdade! A vida ta muito chata e as pessoas piores ainda! Sou desse tempo e estou aqui firme e forte! Com algumas escoriações, mas de pé! Bjs e otimo fim de semana! Espero q ja estejas bem melhor!

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