A primeira vez na Sapucaí é trauma que a gente não esquece

Não sei exatamente em que momento da vida me tornei mangueirense, mas fato é que sou verde e rosa desde que me conheço por gente. Natural, portanto, que fizesse minha estreia na Marquês de Sapucaí defendendo as cores de Jamelão. O tema daquele Carnaval de 2005 era “Mangueira energiza a avenida – O Carnaval é pura energia e a energia é nosso desafio”. Alemoa e eu escolhemos nossas fantasias de “energia positiva” pela internet, no site da escola, e pagamos em três suaves prestações seis meses antes. Contava os dias para deslizar sorridente pela avenida como a mais talentosa das passistas.

Deveria existir uma lei obrigando o Estado a advertir carnavalescos de primeira viagem para o risco de um ataque cardíaco iminente ao longo do desfile. Ou talvez devesse acreditar menos nas imagens sorridentes que assisto na tevê.

SAO PAULO - SP 04/03/2011 - GERAL JT - CIDADES - CARNAVALSP - DESFILE DAS ESCOLAS DE SAMBA DE SAO PAULO 2011 - Tom Maior no desfile das escolas de samba de São Paulo no Anhembi. FOTO FILIPE ARAUJO/AENEM TUDO É O QUE PARECE SER

Ou, quem sabe, buscar me informar melhor a respeito dos preparativos das sambistas profissionais para encarar a madrugada de folia. A regra é só uma: alimentação leve, hidratação e descanso. Fui tomar conhecimento de tal pré-requisito quando já era tarde. Nem o mais amador dos gringos faz o que fizemos. Passamos o dia estiradas na areia de Ipanema, sob um sol de quase 40 graus Celsius, bebendo cerveja e imaginando o sucesso da nossa performance.

bento1124É MUITA IGNORÂNCIA

Voltamos para casa quando já anoitecia, tomamos banho e cometemos o segundo pecado dos ignorantes: vestimos a fantasia antes de chegar ao Sambódromo. Manda a lei do bom folião que ele dirija-se para a Marquês de Sapucaí com sua fantasia devidamente acomodada em sacos plásticos, tal qual é entregue pela escola, e que só vista a dita cuja no momento de dirigir-se para a concentração. Pois nós vestimos o traje de “energia positiva” para entrar em um taxi Fiat Uno. O traje podia ser considerado tudo menos minimalista. Consistia em um macacão prateado com dois suportes de arame que se encaixavam em cada um dos ombros e de onde brotava uma profusão de plumas. Para a cabeça, estava reservado um chapéu prateado bem justo, mas tão justo que espremia as têmporas fazendo com que os olhos quase saltassem para fora do globo ocular.

mulher-doidissima5-594x4994CHAPÉU DOS INFERNOS

O motorista nos deixou nas imediações do sambódromo antes que uma conseguisse a peripécia de furar o olho da outra com aqueles arames que prendiam as plumas – e antes que metade das plumas fosse engolida por cada uma de nós. Chegamos à Sapucaí quatro horas antes do horário da entrada da Mangueira na avenida e não restava outra coisa que não fosse esperar parada, sem se mexer, para não desmanchar o que restava de “energia positiva” no nosso corpo, sob pena de a escola ser penalizada no quesito Alegorias e Adereços.

Só que a tarde de hidratação à base de cerveja na praia começou a cobrar seu preço. Deu-se início, então, ao revezamento no banheiro químico sem tranca por dentro. Enquanto uma cuidava a porta do lado de fora, a outra se debatia nas paredes do apertado banheiro, com dois metros de plumas saindo de cada ombro, até conseguir tirar o mínimo necessário do macacão a fim de aliviar a água do joelho.

mulher-hysteria3FANTASIA DOS INFERNOS

Uma hora antes de a Mangueira entrar na avenida, eu exibia um humor de cão. Minha fantasia já havia sido costurada duas vezes pelas costureiras de plantão da escola, eu me sentia levemente mijada nas pernas devido à falta de desenvoltura e espaço no banheiro químico e uma dor de cabeça dilacerante corroía meus miolos esmigalhados por aquele maldito chapéu com duas antenas viradas para a lua. Como se não bastasse, fui apresentada a um exército de nazistas do Carnaval, um séquito de integrantes da escola, fiscais medindo dois metros de altura cada um, vestidos com uma espécie de abadá enfeitado com o brasão da Mangueira, que encaram, ano após ano, aquele momento na avenida como questão de vida ou morte.

logo_mangueira21-278x300SALVE A VERDE E ROSA

Quando o hino da verde-rosa tocou anunciando a entrada triunfal da escola na passarela do samba, aqueles homens de dois metros de altura, que controlavam principalmente o comportamento de foliões desavisados feito nós duas, passaram a sacudir as mãos e a berrar para que pulássemos, sorríssemos e cantássemos o samba-enredo da escola. Quem disse que nós sabíamos? Na fila atrás de mim – e com aqueles bons quilos de fantasia nas costas -, Alemoa começou a sentir a diversão transformar-se em pesadelo. E o que faz a Alemoa quando sente a diversão transformar-se em pesadelo? Ela fica estressada. E o que ela faz quando está estressada? Ela berra e xinga. Berra e xinga quem? A pessoa com quem tem mais intimidade. Naquele caso, eu.

– Dança, Mariana! Vai, traste! Gira! Balança a fantasia! – berrava a Alemoa, com aquele sotaque bageense carregado atrás de mim, em meio àquela batucada ensurdecedora da bateria à nossa frente.

A chegada da melhor amiga merece um brinde!

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SIM, NOSSA AMIZADE SOBREVIVEU ÀQUELE CARNAVAL

Quanto mais os fiscais achavam que a Alemoa não estava dando tudo e si – ou quanto mais ela julgava que eles estavam monitorando cada passo dela –, mais acuada ela se sentia – e mais julgava-se no direito de descarregar em mim.
– Tu tá ouvindo o que eles estão dizendo? Te mexe, traste, ou a escola vai perder ponto!

Eu queria dar uma bifa na cara da Alemoa. Portanto, evitava olhar para trás. Não havia mais o que pudesse fazer. Saracoteava de um lado a outro na largura daquela avenida, exausta, com os braços para cima, louca para fazer xixi, com uma dor de cabeça dilacerante, fingindo saber cantar muito mais do que o refrão:

A energia do samba
É o combustível do amor – Sou Mangueira
Nos braços do povo fazendo fluir
A verde e rosa na Sapucaí

Súbito, a gritaria da Alemoa desapareceu. Ponderei que ela deveria estar satisfeita com a minha performance. Faltavam ainda uns bons 15 minutos para chegarmos à Apoteose. Então, virei para trás e qual não foi a surpresa: dei de cara com aqueles dois olhos esbugalhados da Alemoa, as bochechas roxas com as sardas saltando e uma expressão de pavor.

– Acho que vou ter um ataque cardíaco – ela dizia. – Não posso mais.
– Calma que falta pouco – tentei tranquilizar.

Woman looking crazy.AINDA FUI COMPREENSIVA

Foi nosso primeiro e último diálogo na passarela do samba. Quando, enfim, terminamos o percurso, fomos cuspidas por aqueles fiscais de dois metros de altura e pelos integrantes da ala que vinha logo atrás para fora do sambódromo, direto na avenida, quase atropeladas por carros e ônibus, feito duas indigentes tentando carregar nas costas quilos de plumas que um dia consideramos sinônimo de puro glamour.

capa livro tudo
Este texto é uma das crônicas do meu terceiro livro “Tudo tem uma Primeira Vez”
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Mari Kalil

Mari Kalil

Sou escritora, jornalista, colunista da Band TV e Band News FM e autora dos livros "Peregrina de araque", "Vida peregrina" e "Tudo tem uma primeira vez". Sou gaúcha, nasci em Porto Alegre, vivo em Porto Alegre, mas com os olhos voltados para o mundo. Já morei em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Barcelona. Já fui repórter, editora, colunista. Trabalhei nos jornais Zero Hora, O Estado de S.Paulo e Jornal do Brasil; nas revistas Época e IstoÉ e fui correspondente da BBC na Espanha, onde cursei pós-graduação em roteiro, edição e direção de cinema na Escuela Superior de Imagen y Diseño de Barcelona. O blog Mari Kalil Por Aí é direcionado a todas as mulheres que, como eu, querem descomplicar a vida e ficar por dentro de tudo aquilo que possa trazer bem-estar, felicidade e paz interior. É para se divertir, para entender de moda, de beleza, para conhecer lugares, deliciar-se com boa gastronomia, mas, acima de tudo, para valorizar as pequenas grandes coisas que estão disponíveis ao redor: as coisas simples e boas.

11 Comentários
  1. Obrigado por compartilhar sua experiêça. Imagino como foi sua agonia no Sámbodromo. É bom que as pessoas conheçam que tudo não se traduz alegria,nem sempre e tão fácil e mais quando não se esta acostumado. Mas acredito que seu carnaval é muito bonito.

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