Quando ficou entre os vencedores do primeiro concurso Contos do Rio, promovido pelo jornal O Globo, em 2003, a jornalista Martha Mendonça decidiu voltar a escrever ficção, uma rotina abandonada por causa da profissão. Nascia assim uma escritora ágil, com domínio da linguagem, e também versátil: as histórias e personagens de Martha foram parar não só em livros, como nas telas, no palco e até no site de humor Sensacionalista, do qual é uma das fundadoras e redatora – site que é um dos maiores fenômenos recentes do humor na internet.
Em seu quarto livro publicado pela Record, Filhas de Eva, Martha retoma o momento daquela primeira virada: a coletânea inclui “Namorada”, o conto premiado em 2003, além de outras 17 narrativas sobre mulheres “adjetivas”, personagens que começam a se revelar ao leitor já a partir de títulos como “Obcecada”, “Indecisa”, “Romântica”, “Desperta” ou “Morta”. Com aparente despretensão, a autora empreende uma investigação do universo feminino em toda a sua complexidade.
CAPA DO LIVRO “FILHAS DE EVA”
Editora Record
128 páginas
R$ 29,90
Em entrevista para o blog da editora Record, Martha falou da construção das personagens, de seu fascínio pelo feminino, da influência do humor e também da possibilidade de, no futuro, as filhas desta Eva serem adaptadas para outras linguagens.
– Escrevi a maioria desses contos há muito tempo, alguns há mais de 10 anos. Tanto tempo depois de ter escrito, percebo que eles têm realmente vida própria, como se suas histórias tivessem seguido em frente sem mim nesses anos todos. Ao reler esses contos, alguns me abalam de fato, como “Compulsiva”, que fala do descontrole emocional de uma mulher que compensa sua insegurança na comida, e o desespero da mulher moderna em “Apressada”. Talvez porque os dois falem muito de mim e, ao mesmo tempo, de tantas mulheres – observa.
A JORNALISTA E ESCRITORA MARTHA MENDONÇA
Leia um trecho do conto “Compulsiva” para conhecer melhor a linguagem de Martha.
As tardes de domingo. O apocalipse existencial. Seria assim, se não fossem as balas agridoces revestidas de açúcar cristalizado, ou as trufas de chocolate com nozes. Quase sempre em frente à TV. Naquela tarde de chuva, ansiava por uma novidade. Férias deveriam ser facultativas. Nada para fazer. Tudo para comer. Havia horas que ela estava com desejo de algo doce. Não um mero iogurte ou bolinho de laranja. Também não era o caso de um chocolate quente com torradas e geleia. Naquela tarde, o friozinho e o filme-catástrofe preferido de sua infância, alugado havia dias, pediam algo especial. Mirou o cacho de bananas em cima do aparador. Os olhos brilharam. Cortou cinco em pequenas rodelas, nem finas nem grossas. Rodelas perfeitas. A boca aguou. Buscou mel no armário. Um vidro pela metade, mas suficiente. Salpicou açúcar. Já estava quase levando ao forno quando sentiu falta de alguma coisa. Canela em pó! Revirou a despensa. Nada! Olhou a chuva. Forte. Ir até a padaria por um pouco de canela seria insanidade. A ideia de um ato assim tão ridículo lhe deu mais fome.