Ser tia é amar profundamente uma nova pessoa que parece ter saído de dentro de nós

Lembro até hoje da cena, da minha reação, do rosto da minha irmã – e tudo isso é algo que jamais vou esquecer. Havíamos combinado de almoçar na casa da mãe, e minha irmã estava mais interessada do que o normal na confirmação da minha presença.
– Sim, Lulu. Estarei aí. Meio dia e meio, já disse – tranquilizei.
– Tá bem.

Me servia de uma concha de feijão e uma colher de arroz quando ela parou do meu lado e colocou um envelope na minha frente.
– Tô grávida – comunicou, e ficou esperando minha reação.
Só que eu não tive reação. Larguei a concha de feijão e, por algumas frações de segundo, fiquei tentando entender o que se passava na minha cabeça e no meu coração com aquela notícia entrando pelos meus ouvidos, sendo processada na minha mente, me tocando emocionalmente, antes de conseguir falar qualquer coisa. E sem falar qualquer coisa, olhei para ela.
– Tô grávida – ela repetiu, como se quisesse convencer a si mesma que, sim, ela estava esperando um filho e nada mais seria igual dali pra frente.

Fiquei muito, muito feliz, claro. Nos abraçamos, nos beijamos, quis saber detalhes da descoberta, quis ver a ecografia, quis entender quando e como tinha tudo acontecido, mas havia algo mais dentro de mim – e quando entrei no carro em direção ao trabalho, desabei. Chorei compulsivamente como há muito tempo não lembrava de ter chorado. Um choro diferente. Era um choro que demorei a entender. Ele vinha das profundezas da minha alma.

Este choro servia como uma espécie de trilha sonora para uma sucessão de imagens que passavam incessantemente na minha cabeça. Memórias de uma vida inteira com minha irmã querida. Lembrei de quando Lulu nasceu, dela perdida na praia, sentadinha nos fundos da casa da mãe sendo alfabetizada por mim, do primeiro livro que pegou na biblioteca e da alegria de me mostrar que havia aprendido a lição.

Lembrei de Lulu querendo aprender violão porque eu já tocava, dos sustos que pregava nela dizendo que sabia conversar com duendes, das nossas idas e vindas à locadora de filmes, dos filmes de terror que fazia ela assistir ao meu lado, de nós duas patinando no parque, do papel de Sonho de Valsa jogado na rua que ensinei ela a juntar e nunca mais sujar a calçada. Cenas banais de um cotidiano somado a 35 anos de convivência. E chorava, chorava, chorava. Como chorava.

Chorei no carro, chorei trancada dentro do banheiro do trabalho, chorei em casa. Fui dormir chorando e, no dia seguinte, acordei inchada – e chorando. Me vesti para a consulta na psiquiatra e, quando entrei na sala, sentei na poltrona e contei o que estava acontecendo, ela olhou para mim e disse:

– Percebeu a roupa que tu está usando, Mariana?
Não, eu não havia percebido. Eu não havia me dado conta de que, inconscientemente, havia colocado uma saia longa e uma bata larga por cima.
– Mariana, tu está vestida de grávida. Tu está grávida junto com a tua irmã – ela diagnosticou, sorrindo.

Eu estava grávida. Meu choro era de emoção. Meu choro era de grávida. Eu e Lulu estávamos grávidas. Tudo passou a fazer sentido.

Muito havia ouvido falar de que filhos de nossas irmãs são nossos filhos também. Mas a teoria sempre só faz sentido quando a realidade se confirma. Quando João Benício nasceu, me tornei tia – e ser tia é o maior presente que um irmão e uma irmã podem nos dar. Ser tia é descobrir a maternidade de outra forma, é descobrir um amor que não sabíamos que existia.

Quando me tornei tia, passei a enxergar as crianças de outra forma, com mais ternura e paciência. Passei a entender também as faltas de paciência das mães em muitos momentos. Quando me tornei tia, passei a sentir mais saudade, passei a beijar e a abraçar mais. Passei a me preocupar mais com a humanidade, com o futuro, com o legado das pessoas e das coisas. Quando João nasceu, me tornei um ser humano melhor.

Ser tia é amar profundamente uma pessoa que não saiu de dentro de nós, mas que leva nossa história com ela. É encontrar tempo onde antes só havia falta de tempo. É segurar no colo, é não sentir dor no braço, é aguentar sem reclamar a dor nas costas. É deixar a garrafa de vinho e o Netflix de lado numa sexta-feira à noite para deitar ao lado de quem insiste em se manter acordado. Ser tia é achar graça no que antes soava como uma grande roubada.

Tias também são mães, são capazes de amar como mães.
Tias são a segurança das mães de que, em qualquer ausência delas, amor é o que jamais faltará.

IMG_9456JOÃO BENÍCIO E SUAS DUAS MÃES

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Mari Kalil

Mari Kalil

Sou escritora, jornalista, colunista da Band TV e Band News FM e autora dos livros "Peregrina de araque", "Vida peregrina" e "Tudo tem uma primeira vez". Sou gaúcha, nasci em Porto Alegre, vivo em Porto Alegre, mas com os olhos voltados para o mundo. Já morei em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Barcelona. Já fui repórter, editora, colunista. Trabalhei nos jornais Zero Hora, O Estado de S.Paulo e Jornal do Brasil; nas revistas Época e IstoÉ e fui correspondente da BBC na Espanha, onde cursei pós-graduação em roteiro, edição e direção de cinema na Escuela Superior de Imagen y Diseño de Barcelona. O blog Mari Kalil Por Aí é direcionado a todas as mulheres que, como eu, querem descomplicar a vida e ficar por dentro de tudo aquilo que possa trazer bem-estar, felicidade e paz interior. É para se divertir, para entender de moda, de beleza, para conhecer lugares, deliciar-se com boa gastronomia, mas, acima de tudo, para valorizar as pequenas grandes coisas que estão disponíveis ao redor: as coisas simples e boas.

3 Comentários
  1. Ai, Mari. Emocionei… Não sou mãe e sinto o mesmo com os meus sobrinhos e agora, especialmente, com a Manu, afilhada de um ano e meio. Inexplicável esse amor tão grande. <3 Lindo!

  2. Lindo texto…me vi dentro de tudo que dissestes…tenho 2 filhos e meu irmão agiu e até hoje (depois de 2 anos e 5 meses) age da mesma forma…enlouquecido por eles!
    grande beijo!

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